quinta-feira, 14 de janeiro de 2021


 

 

CHUVA FEITICEIRA I

 

quando em mim chuva breve se derrama,

alegre então a chamarei felicidade,

talvez amor, quiçá mesmo de ansiedade,

quando algum pingo por meu nome chama.

 

sobre mim cada pingo que se abana

se entranha facilmente e sem bondade,

até que a alma empape em seriedade

e por momentos até finja que me ama.

 

porque essa chuva se derrama é para si,

querendo a terra inteira em si tomar

e a desertos só não vai por um capricho.

 

e quando a penso refrescar-me aqui,

é a própria alma que vem-me retirar

dentro da mente, em malicioso esguicho!

 

CHUVA FEITICEIRA II

 

minha chuva és tu e em ti me dessedento

quando estás perto, porém sede eu passo

quando entre nós se expande o triste espaço

a separar-me de meu completo alento.

 

minha chuva és tu em cada instante bento

em que te encontro no estender do braço,

por mais fugaz que seja esse teu traço,

por mais que o teu carinho seja lento...

 

pois como a chuva que caia de uma nuvem

nunca se assenta em um único lugar,

meu coração raramente a acompanhar,

 

empós os raios e trovões que rugem,

logo estás longe e contra a chuva eu peco,

nessa revolta por achar-me inteiro seco!

 

CHUVA FEITICEIRA III

 

não sei bem onde estás.  sei o que fazes,

que, às vezes, tu me contas... quando queres;

a que lugares foste, teus quereres,

as coisas boas ou más com que te cases.

 

não sei sequer o leito em que hoje jazes,

só sei não ser o meu.   os teus fazeres

a ti pertencem...  a mim, os perceberes

de que tua vida gira em estranhas bases.

 

mesmo que minha gire em torno a ti,

rangendo os dentes perante tuas ausências,

sorriso aberto a cada vez que voltas,

 

sonhando em vão que estejas sempre aqui,

tu, dama altiva, de tais impertinências,

que um dia me domaste e não me soltas.

 

 

LUA FEITICEIRA I

 

quando meu corpo se for, crescerei flores

ou cenouras, quem sabe, ou então figueiras

e não serei lembrado, mas as jeiras

da terra a que pertenço outros amores

 

irão gerar (ou talvez, outros horrores,

no derramar do sangue), mas certeiras

essas partículas de mim, alvissareiras,

irão participar de outros fragores,

 

desde que não me enfiem em gaveta,

consoante o horrendo costume dessa gente,

que prefere criar múmias em caixões,

 

para esconder de si a visão secreta

de que melhor é ser legume indiferente

do que ossos empilhados aos montões.

 

LUA FEITICEIRA II

 

a lua loura lá de cima me observa,

tão transitória qual fora uma mulher;

quatro vezes ao mês muda o mistér,

de seu controle a humanidade serva.

 

mas sem contar essas fases em que ferva,

quando até brinca brejeira de esconder,

na lua nova, sem brilhar sequer,

bem mais diversa nos mostra outra reserva.

 

porque é loura só às vezes: amarela

e de outras tantas é ruiva avermelhada

e quando fica pelas nuvens abraçada

 

é lua morena, como tímida donzela,

mas quase sempre mostra-se grisalha,

quando sua prata sobre nós espalha...

 

LUA FEITICEIRA III

 

a lua de verão ser pretende carinhosa:

pelos seus dedos faz rolar a brisa,

entronizada sobre sua sacra frisa,

é lua arcana, sobre as vagas poderosa...

 

a lua de inverno já é menos generosa,

embora pingue sobre o solo em que se pisa,

mas em sua frialdade os crânios giza,

raios enfia nas mentes, mais curiosa...

 

então eu penso se me alumbrará,

caso eu tombar à beira de uma estrada

ou balouçar em leves ondas de lagoa?...

 

até que ponto essa luz me seguirá,

em minha possível viagem estrelada

ou se da alma nem um pouco se condoa...

 

CHRONOS FEITICEIRO  I

 

na antiga redação da Teogonia,

o sábio Hesíodo nos revelou a geração

dos velhos deuses em sua vasta multidão,

quando um rei a outro rei substituía.

 

no principio era o Rei Caos, que refletia

somente a si qualquer fora a ocasião,

nada crescia e nem vivia então,

sequer a bruma em seu entorno flutuaria.

 

mas veio Chronos, o Tempo, do Caos filho

e a cada coisa lhe imprimiu o início,

para bem ou para mal teve o seu vício,

 

até que Zeus lhe interrompesse o trilho

e resgatasse seus irmãos que devorara,

de novo a história a se iniciar de forma clara.

 

CHRONOS FEITICEIRO  II

 

o tempo passa e as coisas permanecem,

no mesmo ponto de antes, a não ser

que um fato natural nos surpreender

venha de chofre.  é então que desfalecem

 

todos os tédios... os males já se esquecem

que antes afligiam e até o aborrecer

se esvai depressa...  assim, nosso viver

se estraçalha e as aflições se compadecem...

 

mas há outra maneira de mudar

nosso destino do perpétuo ramerrão:

esta é fazer com que as coisas aconteçam.

 

somente ao proagir que irás tornar

em concreta tua fugaz abstração

em que os sonhos finalmente coalesçam.

 

CHRONOS FEITICEIRO  III

 

mas não se pode ao Tempo dar-se corda,

igual que às minúsculas prisões,

em que células do tempo de ilusões

aprisionamos para o momento em que se acorda.

 

são só retalhos de Chronos que se aborda,

inúteis sendo todas nossas previsões;

o deus antigo tem suas próprias mutações

e com nossos ideais raro concorda...

 

assim, caso algo quiseres realizar,

o melhor é largar tempos de lado,

pensar apenas no espaço a percorrer;

 

não conta as horas de teu fatigar,

mas as tijolos de cada resultado,

que o tempo é carne e sangue de teu ser!

 


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