domingo, 24 de janeiro de 2021


 

CRISTAL DE BEIJOS I – 7 JULHO 2020

 

Fui em tua vida só um vento de passagem,

um zéfiro de leve, que tua fronte

apenas refrescou, calmo desponte

de quem tocou de leve e sem coragem;

as faces te beijei qual fiel aragem,

que revigora e a dor que te pesponte

alivia por vezes, sem que conte

mais que na chuva o momento da estiagem.

 

Eu não permaneci – só estive perto,

teus lábios aflorei, mas não com os meus,

foram teus ossos malares que beijaram,

enquanto os meus apenas se encostaram

nas maçãs de teu rosto, em toque incerto,

sem que meus lábios se fizessem teus...

 

CRISTAL DE BEIJOS II

 

E sendo em tua vida apenas vento,

talvez sopro de sombra amarfanhada

ou inaudível som de luz airada,

sussurrado em ouvido desatento;

e sendo apenas um cultor de teu alento,

a respirar, faminto e inconfessado,

tal qual adulto de um peito relembrado

que não pode mais sugar com beijo bento,

 

eu reduzi-me à champanha de tua taça,

ou como dizem na Argentina, eu fui “champá”,

para mim mesmo pregando essa pirraça;

contudo creio que amor maior não há

que esse que não pede e só perpassa,

muito de leve, o rubor que encontra lá...

 

CRISTAL DE BEIJOS III

 

Pois não fui mais que beijos de cristal,

como esses que nos doa cada taça,

num reflexo de luz cheia de graça

ou o mais leve pendor de um festival;

a taça aflora os lábios em total

despreendimento do que te congraça;

teu fôlego só responde-lhe com jaça,

sua superfície embaciada e sem fanal.

 

Mas se o calor ainda pode incomodar,

pões da taça a beirada no malar:

conserva ainda do gelo e seu frescor,

de modo igual que foi todo o meu tocar,

teu mais gentil e amigo protetor,

sem nem ao menos te falar de amor...

 

REENCARNAÇÃO I – 8 JULHO 2020

 

Quando volveste para mim dos mortos,

depois de tantos anos de abandono,

depois desse mergulho, em cujo sono

todos se vão para ignotos portos,

do teu espírito o meu tornou-se dono,

depois de amores tontos e de abortos,

depois de estranhas sendas, sonhos rotos,

no inesperado esplendor de tal abono.

 

Mas ainda nos vigiamos, circulamos

e é como se essa alma no teu corpo

me encarasse com um ar de acusação,

que apenas de soslaio suspeitamos,

qual se esperar ainda devesse e incorpo-

rada tivesse junto a mim mais que ilusão!

 

REENCARNAÇÃO II

 

A obrigação feminina de ser bela

para uma bemaventurada servidão,

que desde o berço exige formação,

quão velozmente na vida se cancela!

Mil artifícios ensinam à donzela,

que possa se afirmar em situação,

na qual dela descendentes brotarão

e até afirmam que nasceu de uma costela

 

e portanto ainda faz parte integrante

de algum homem a quem se submeter,

o seu destino a transmissão da raça,

por mais que haja revolta nela impante,

a ânsia oculta de querer mais ser

que apenas vinho dentro de uma taça!

 

REENCARNAÇÃO III

 

Os pitagóricos antigos afirmavam

que a alma humana, após desencarnar,

por mil anos habitava algum lugar

que claramente jamais delimitavam;

e após mil anos se purificavam,

indo os espíritos no Rio Lethe mergulhar,

para toda a lembrança se apagar

e totalmente renovados retornar...

 

Assim eu julgo que tua alma retornou,

sem que da minha devesse recordar,

mas algo lhe restou, bem lá no fundo

e quando vejo esse olhar que desconfiou,

queria fosse bem mais que um suspeitar

que algo restou de um amor que foi profundo!

 

AGIOTA I – 9 JUL 20

 

A vida apenas recebemos por empréstimo:

a deusa Biota a todos nos controla,

muitos cordéis retorce numa bola,

e nos força uns aos outros gerar préstimo;

mas antes de nascer, firme contrato

faz todos assinar, com fluido universal,

em garantia da obediência individual,

que não pode ser quebrado em desacato.

 

E deste modo, se nossa alma revestida

quer estender sua permanência anos a fora,

atender suas cláusulas pétreas nos devemos

e continuamos aqui, contudo a vida

constantemente cobra seus juros de mora

e por isso a pouco e pouco envelhecemos...

 

AGIOTA II

 

Cada contrato assinado com a Biota

irá nos conceder número certo

de anos a enfrentar neste deserto,

em que a carne sobre nós poder denota;

mas a deusa certamente é boa agiota,

pelo empréstimo quer juro claro e aberto;

algo se paga em troca desse acerto,

tal qual da alma se vendesse quota...

 

Que a deusa então colocaria a render,

outros espíritos sutilmente a seduzir

à permanência neste mundo material...

Masoquistas, talvez, querendo aqui sofrer,

quiça alguma culpa pensando dirimir,

por corrupção ou por falha espiritual...

 

AGIOTA III

 

Não sei de onde me proveio a ideia,

mas uma vida prolongada sai mais cara

e suicídio é solução tão só ignara,

paga-se o juro sem o gozo da epopeia...

Ou tudo isso é só um canto de sereia,

que os artifícios a descantar não para,

em sedução agridoce ou dulcemara,

nos compassos de sua longa melopeia...

 

Por enquanto, envelheço devagar...

Talvez bons termos eu tenha negociado

e aqui esteja mais ou menos descansado,

até que a deusa se decida a me buscar,

ou a seu irmão, Thanatos, me entregar, (*)

um vasto juro a ser então determinado... 

(*)  O deus grego da morte é masculino, como o nórdico.


Nenhum comentário:

Postar um comentário