segunda-feira, 18 de janeiro de 2021


 

 

VIÁTICO I – 15 JUN 2020

 

São lânguidos olhares, à guisa de alimento,

com que me estendes oco o pano de um farnel:

se algo busco nele, somente encontro um gel,

que me lambuza os dedos, no crime de um momento.

 

E insisto em procurar, em magro julgamento,

em meio aos favos secos, vazios de todo o mel,

caserna abandonada, que um dia foi quartel,

qualquer sucesso espúrio, permeio a impedimento.

 

Viático bem pobre ganhei para o caminho,

que é estreita e dura a senda até teu coração,

buscando fruto à margem, senão, morro faminto.

 

Embora eu só quisesse ganhar o teu carinho

e fique a dedilhar as cordas da ilusão,

sabendo quanto é inútil mostrar-te o amor que sinto.

 

VIÁTICO II

 

Não obstante insisto e busco estar contigo;

és sempre delicada, porém nada concedes;

apresto-me a fazer favores que me pedes,

continuamente acolho teu coração no abrigo

 

do meu, em vão descuido do perigo,

mas se busco entrar no teu, não cedes;

a negativa é firme: embora quedes

sempre a meu lado, teu beijo não consigo.

 

E não entendo a razão de ter o teu carinho,

mas não teu beijo, que estimava tanto.

É como se estivesse à margem do caminho

 

e o invés de percorrê-lo com meu firme passo,

visse a estrada deslizar, em  estranho canto,

do qual reger não posso o mínimo compasso.

 

VIÁTICO III

 

Porém nesse caminho, que lentamente afasta

as minhas esperanças de me dessedentar,

nada encontro, de fato, para me alimentar:

contudo a sua passagem de certo modo basta.

 

Estranho te sentir nessa impureza casta,

pois te moves sempre além, sem nunca te afastar

e quando grãos de areia de amor quero buscar

a sombra de meus dedos na poeira se desgasta.

 

E continuo esperando, nem sei por que razão,

quiçá porque no antanho o incauto julgamento

abriu vazio altar bem fundo  ao coração

 

e ali te colocou, porém não a verdadeira,

tão só essa miragem que ergui no pensamento,

enquanto corres sempre no fluido sendeiro.

 

LUPANAR 1 – 16 jun 20 

 

Alguns há que reprovam ligações perigosas

Que dizem estou tendo, tão só por malefício;

Eu cá, bem quereria ciranda de bulício

Me circundasse agora em voltas tão fogosas

 

Que pudera esquecer os anos sem malícia,

Que tive em ligações somente cuidadosas...

Meus anos pervertidos, supinamente rosas

De puro trescalar, estéril pudicícia!...

 

Que as ligações de agora talvez me tragam vida!...

Que todo o meu desgosto levara de vencida

E o tédio me afastassem, em gosto de romã,

 

De cidra e tamarindo, damasco e rosmaninho:

Que nestes olhos loucos fremira do carinho

Que só se pode achar no amor da barregã!...

 

LUPANAR 2

 

De mim esperam, certo, total fidelidade,

Que a vida transparente se mostre a cada dia

Que apenas realize o que se permitia,

Meu tempo desgarrado em vã opacidade.

 

Não é por ter respeito, é bem mais por maldade:

Que não possa eu beijar feliz a quem queria,

Porque não têm igual na sua desvalia

E assim pretendem sua maligna amizade.

 

Mas vejo em seu olhar o cintilar da inveja

A cada vez que notam alguém a dar-me amor,

Não que eu frequente jamais um lupanar...

 

São eles que ali vão, quando ocasião se enseja,

Enquanto em olhos puros encontro meu calor,

Em tal amor compacto que nunca irão achar!

 

LUPANAR 3

 

Contudo, ainda reparo uma inveja diferente,

Porque posso escrever o que eles jamais podem,

Mesmo quando num labor intenso se demodem,

Nada conseguem obter do esforço ingente;

 

Nada mais do que frases vazias de semente,

Enquanto para mim tão fácil versos rodem;

Que sobra para eles exceto que me apodem

E algum pretexto busquem no escuro de sua mente.

 

Que mais que carne e sangue eu vejo nas amantes

Esse corisco de paixão que me desperta o verso!

Que importam, realmente, os orgasmos cintilantes,

 

Se os raios sobrenadam ao longo destas linhas

E vejo num soneto qualquer trovão converso:

Que é este o lupanar de quantas foram minhas!

 

GEOMETRIA DO VERSO I – 17 JUN 20

 

Redigir longas linhas para mim é fácil:

Olha-se o mundo com condescendência,

Ouve-se o mundo com muchochos de paciência

E vê-se até no podre um elemento grácil;

Porque palavras são memória físsil,

Ansiosas de explodir, circunferência

Inserida num quadrado, onipotência

Do triângulo redondo mais difícil;

Já encontrar bons ouvidos é diverso,

Os olhos se conservam interditos

E até as narinas só respiram sonho

E nestes versos de espelho me disperso,

As linhas mortas traço em sons malditos,

Que empunho a lupa e a ampliar me ponho.

 

GEOMETRIA DO VERSO II

 

Eu não pretendo atender ao telefone

Por mais que toque hoje, pois não quero

Ouvir as vozes que nem mais espero,

Metálicas a soar no microfone;

Eu não desejo ser o final do cone,

Eu não quero escutar o desespero

De vozes a fios presas, ou o severo

Manifestar de um i-pod que se entone;

Não quero um celular trazer comigo,

Nessa loucura coletiva de mil vozes

Falando pelos cantos de cem ruas;

O que eu desejo é ouvir o som amigo

De tua voz junto a mim, e que me esposes

Tua boca ao meu ouvido com palavras nuas.

 

GEOMETRIA DO VERSO III

 

Nenhum quadrado pode ser aberto:

Faltando um lado, um triângulo se forma;

Às paralelas terceira linha deforma:

Com mais de duas seu destino é incerto.

Três dimensões nos versos eu acerto;

Tem essa da palavra que reforma

As frases tolas e num cartão conforma

Essa tua ausência como estando perto.

A segunda dimensão é o meu tocar,

Que pelas teclas se perde sem parar

Quando dígito após digito é completo;

Já a terceira dimensão é o teu olhar,

Que do papel os tira com afeto,

Para o triângulo amoroso completar!...


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