domingo, 17 de janeiro de 2021


 

 

PINGOS DE GELO  I  -- 12 JUN 20

 

Nos caminhos da Praça da Estação

Piso as folhas dos bordos e tropeço

(que aqui chamam de plátanos) e peço

A suas bolotas que me coroem de canção.

 

Não sei por que resolveram, sem razão,

Mudar o nome das árvores que meço

Contra a bandeira canadense (e esqueço

O fio deste soneto em discussão...)

 

O que acontece é que as folhas em que piso

São mil mensagens deixadas do passado,

Cada qual roubou fragmento de alma

Deixada pelos mortos, em seu siso

De buscarem lembranças, revelado

No tranquilo desespero de minha alma.

 

PINGOS DE GELO  II

 

Percorro tais caminhos, calmamente,

Mesmo que estugue os passos a energia;

Olho os canteiros com certa nostalgia,

Sua grama amarelada e fenescente.

 

Não há flores nesta praça, infelizmente:

Entre os bordos pouca luz transpassaria;

Mas nos caminhos da praça então veria,

Bem no centro, o monumento ali presente.

 

Canhões de guerra antiga e já esquecida;

Há alguns pintores e literatos de cimento,

Sentados mudos, sem mate, conversndo,

Sentinelas de uma época perdida,

Sem que ninguém lhes volva o pensamento

E nem sequer eu mesmo os relembrando...

 

PINGOS DE GELO  III

 

Houve um tempo em que era quase moda,

Entre os voltados para ter vida saudável,

Andar ao redor destas calçadas, em amável

Conversação, quais crianças numa roda.

 

Mas essa gente vejo estar sumida toda,

Pois já não pensam ser recomendável

Esse passeio que julgavam confortável

Ao coração.  A atual situação os incomoda.

 

Os passeadores mostram medo à pandemia,

Passear de máscara é mais desconfortável

E se reduz a praça, de antes apinhada,

Só ao trajeto de quem mais precisaria

À Prefeitura dirigir-se, em inapelável

Contribuição, que ali desejam negociada.

 

PINGOS DE GELO  IV

 

Sobre os caminhos caem pingos de gelo,

Os perdigotos desta morte proclamada;

Santa Covide ainda não foi canonizada,

Há Dezenove anos seu processo num apelo.

 

Durante o outono a geada cai com zelo,

Os pingentes se condensam na calçada,

Logo a seguir já não existe quase nada,

Algum procuro, porém não consigo vê-lo.

 

Mais do que a geada é este pânico gerado,

Se bem que até o presente não morreu

Pessoa alguma só por tal calamidade

Em minha cidade; mas o mal foi implantado

E qual fantasma nas aléias marcho eu,

Por entre os bordos de tal longevidade.

 

ESCADAS DE FOGO I --- 13 JUN 2020

 

Em bile e linfa servi de condimento,

Aferventado por este sol malsão;

De pena e mágoa no imenso caldeirão,

Não fui mais que tempero e sedimento.

 

Mas nem por isso eu dei consentimento

Que meus líquidos servissem de emulsão;

Somente a carne entreguei à concocção,

Sem que de fato servisse de alimento.

 

Fui apenas o sal que o mar fornece,

Fui azeite do lagar das oliveiras,

Fui o ácido vinagre das videiras...

 

Fui parmesão sobre a massa polvilhado,

Tão somente dei sabor que já se esquece

À vida insossa deste mundo deformado...

 

ESCADAS DE FOGO Ii

 

Que ao meu redor o mundo me devore,

Já que a si mesmo devora de inopino;

Que ao meu redor, sem o menor refino,

Destrói a verde natureza que o decore.

 

Não que esse aquecimento me apavore,

Global que seja... e que tantos toquem sino!

Do conhecimento histórico o meu tino

Vai muito além do propalado folklore.

 

As variações climáticas são periódicas;

Durante uma à Groenlândia é que chegou

Leif Eriksson e a ninguém pregou mentira,

 

Porque eram verdes aquelas praias nórdicas

Dos fjords que o navegante ali encontrou,

Até tornar de um vasto inverno a ira...

 

ESCADAS DE FOGO III

 

Hoje constroem-se vastos edifícios

Com mil degraus e vinte elevadores;

Serão escadas de fogo se os horrores

De algum incêndio produzirem malefícios.

 

E de maneira oposta a esses vícios,

Naves  inventam os maiores pensadores;

Explodem os foguetes em estertores,

Deles se espera que nos tragam benefícios.

 

Mesmo que hoje já se tornou lugar-comum

Que nas florestas escadas há de fogo,

Periodicamente a explodir algum

 

Incêndio longo e resistente à extinção:

Melhor então que se conquistem logo

Outros planetas a que se possa lançar mão!...

 

CHUVA EM CHAMAS I – 14 JUN 20

 

Se tenho tanta prática em falar de amor,

Até que ponto de amor falo, realmente?

 

Por certo há o recordar subjacente,

Mas de igual modo, amornou-se o seu calor,

De igual forma que descrever a dor

É tarefa por demais ineficiente...

 

Há um mecanismo de defesa surpreendente,

Que nos leva a esquecer parte do ardor!

 

Muitos sintomas até é fácil mencionar:

Aqui doem com uma pontada aguda,

Ali foi surda essa dor e persistente...

 

Mas é impossível de todo recordar,

Por mais que algum da dor o efeito estuda,

A não ser que ela retorne incandescente!

 

CHUVA EM CHAMAS II

 

Será que ocorre o mesmo com o amor?

Que apenas seus sintomas eu descreva?

 

Que em tantos sonetos já me atreva

A enciclopediar seus efeitos com ardor?

Talvez tanto me repita em tal labor,

Por saber como esse amor minhalma ceva.

 

Descrevendo em meus versos longa leva

De sintomas e de efeitos seu teor.

 

Porém se escrevo num momento de paixão,

Até que ponto consigo interpretar

Isso que sinto e me consome tanto?

 

Até que ponto se desperta o coração

Para essa gesta de emoção se desenhar,

Mesmo que seja na aquarela de meu pranto?

 

CHUVA EM CHAMAS III

 

Porque amor nos alaga como chamas,

Quando chove sobre nós inesperado.

 

O corpo inteiro é por ele requeimado,

No estupor entusiástico das flamas...

E de descrevê-lo novamente sinto ganas,

Será que amores com que fui aquinhoado

 

Dentro do peito se tenham perfilhado

E com o teu amor a mim te irmanas...?

 

Não que pretenda ser meu o teu amor,

Mas que esse amor que descrevo seja teu,

Porque o que lês fez-te tudo recordar:

 

Dessa chuva em chamas de frescor,

Que no meio de suas brasas te prendeu

No amor que amaste apesar de o lamentar?


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