sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021


 

 

ALMAS DE PEDRA I – 24 AGO 20

 

A alguma jóia qualquer mulher semelha:

talvez é o brilho que mostra em seu olhar,

uma turquesa ou esmeralda a rebrilhar

ou algum topázio que mais castanho talha;

talvez seja a semelhança bem mais velha,

algum diamante na raça a se encarnar,

 

algum ônix na sua pele a ressaltar

ou ágata cinza à proteção da sobrancelha.

Qualquer rubi que nos seus lábios veja

ou crisopraso na perfeita carnação,

talvez ébano ou alvaiade na ocasião...

 

Mas é ametista o seu fruto do desejo,

uma safira a me espreitar do umbigo,

que interpretar quem sabe nem consigo...

 

ALMAS DE PEDRA II

 

Às vezes penso que a mulher se originou

inteiramente de algum raro mineral;

essa parábola da costela, por sinal,

recorda o cálcio desse osso que cortou

a Divindade desse Adão que cochilou

(supostamente sendo apenas animal).

 

Mas não foi do pó da terra que, afinal,

foi moldado pela mão de Quem soprou

o fôlego da vida?   Se assim for,

isso o demonstra igualmente original

dos silicatos de alumínio de um areal.

 

Se mais complexo se mostrou o Criador,

ainda incluiu serapilheira vegetal

nessa massa a dedilhar com tanto amor.

 

ALMAS DE PEDRA III

 

Postas de lado quaisquer alegorias,

conforme amantes do zodíaco nos ensinam,

toda mulher tem a sua pedra e dela atinam

as suas características mais sensuais:

por isso brilham os seus sorrisos divinais,

nesse alabastro com que nos animam.

 

Com seus dentes de marfim e ainda afinam

nossa incerteza com arestas consensuais...

Por “Alma de Pedra” significam em geral

um coração maldoso e muito egoísta;

assim meu título te mostrou errônea pista.

 

Mas na mulher, por mais seja mortal,

vejo alma de jóia em rútilo eternal,

que nosso tosco calcário então conquista!

 

ALMAS MINÚSCULAS I – 25 AGO 2020

 

Há um cãozinho, Gremlin Belvanera,

que mora hoje conosco e é meio estranho;

uma vez por semana toma banho,

sempre se esconde no momento dessa espera!

 

Hão de dizer que tal costume é mera

tendência dos cachorros.  Temem lanho

do sabão ou da tosa em tal amanho

e assim o evitam, porque prazer não gera!

 

Mas o cusquinho pegou até o costume

de me esperar pelos degraus da escada,

querendo que lhe faça algum carinho...

Até aí, tudo bem, ainda que rume

três ou quatro degraus mais acima, na passada,

nessa carência atrapalhando meu caminho...

 

ALMAS MINÚSCULAS II

 

Dessa forma, dificulta minha subida,

a cada três degraus, vou-me abaixar,

suas orelhas e pescoço a acariciar

e quando tento completar minha ida,

 

lá está ele de novo, igual ferida

que nunca sara, sempre a me cobrar...

Tudo isso se compreende.  De estranhar

é que era esse o costume, toda a vida,

 

de Arthur Pendragon, falecido há pouco;

quando vivia, Gremlin em nada o imitava;

ficou num saco de plástico o animal,

a meu protesto sendo feito ouvido mouco;

os outros bichos no jardim ela enterrava:

ficou sua alminha penada no final...?

 

ALMAS MINÚSCULAS III

 

O motivo nem sei, mas em geral,

os animais se dão melhor comigo:

elas lhes fazem carinho até no umbigo

e eu sou mais comedido no total.

 

Mas a cada vez que nos chega um animal,

ao qual inicialmente pouco eu ligo,

sem ver razão de me prender consigo,

quando com os outros já sou bem paternal,

 

ele vem logo tomar posse do meu colo:

será que veem em mim afinidade?

Certamente não os trato quais brinquedos.

Arthur Pendragon me buscava solo;

e agora que morreu, será verdade

que encarnou no cãozinho seus segredos?

 

ALMAS DE SEDA I – 26 AGO 2020

 

Com fios de seda me acarinha a aranha

e igual que os outros deuses me balança,

mas na ponta desses fios tenho esperança,

balança o pêndulo, mas a vida se arreganha

e é em tais momentos que se faz tamanha

a certeza de que na vida algo me alcança.

 

Desde que o esforço se conserve e a dança

pareça ser só nossa – essa a artimanha

com que o gato judia o passarinho...

 

Meu pêndulo balança em fio de seda,

mas cada círculo conduz a um só destino:

casulo, enfim.  Mas não será o mais mesquinho:

não serei borboleta, mas sei que a alma enreda

para enfim sugar-me a vida ao som de um sino.

 

ALMAS DE SEDA II

 

Sei que o soneto me vem naturalmente

e sem esforço.  Não sou em que mando nele,

antes existe quem me cuide e vele

e assim me esguiche tais versos de presente,

numa fonte a jorrar constantemente,

som após som e luz que assim me sele

 

o coração, sem que a alma se congele,

por mais que escorra o calor perpetuamente,

mas não são versos de amor nem de martírio

 

que me pingam da boca e da saliva

e que os rasgos de papel assim marchetem;

e nem são mansos como o doce lírio:

da alma são farrapos, nessa esquiva

sofreguidão para que o mundo inquietem!

 

ALMAS DE SEDA III

 

Então minhalma balouça em fios de seda,

no lento pêndulo que manobra a deusa aranha,

que por sugar-me a vida não se assanha,

bem sorrateira em sua emboscada leda,

que outras almas eu próprio lhe conceda,

inadvertido a executar essa artimanha.

 

Sopra-me versos qual se em troco nada ganha,

no casulo de sua teia eterna e queda,

mas pelos versos ela só busca seduzir

 

outros insetos humanos ao seu berço,

enquanto eu rezo meu indolente terço,

até o momento em que pare de fingir

e então me atraia com fio longo e derradeiro,

chegada a hora de me sugar inteiro...

 

ALMAS DE FANTOCHES I – 27 AGO 20

 

Marionetes do amor todos nós somos:

esvai-se o livre arbítrio e todo o engenho:

se tudo eu troco por esse amor que tenho,

no amor que temos esvai-se o que nós fomos.

 

Esse amor nos envolve em estranhos domos,

nos crucifica no mais suave lenho,

só nos sorri enquanto franze o cenho,

descasca a mente e dela arranca os gomos...

 

Translúcido o seu fio, bênção maligna,

fantoches todos faz e nem se importa

em nos dar felicidade ou nos magoar,

só nos domina em abjeção indigna,

eventualmente o fio mágico nos corta

e nos deixa vazios, soltos no ar...

 

ALMAS DE FANTOCHES II

 

Mais lembra o amor essa górgona de antanho,

de cujo olhar a força conduzia ao empedrar,

em uma única intenção, sem pensar nem calcular

as consequências de um tal agir tacanho...

 

Destituído da razão, no empolgar de ideal tamanho

a um objeto só com permissão para mirar,

em condição que o procedimento irá tragar,

enquanto nos perdure o cimentado banho...

 

E no entretanto, como é bom esse delírio,

quer agradável, quer com vezo de martírio,

tal como o Beijo que marmóreo nos deixou

o escultor Rodin, sua obra-prima a ilustrar

que amor só dura enquanto imóvel for ficar,

como esse beijo que dois amantes congelou!...

 

ALMAS DE FANTOCHES III

 

Mas só imagino quanto tempo demorou

a cinzelar sua obra-prima o escultor;

esse casal representando tal amor

por quanto tempo a se beijar ficou?

 

Certamente o seu sabor se desgastou,

corpos estáticos no instante do esplendor,

dos modelos o respirar feito estertor,

com lábios secos que já o nojo dominou...

 

Ambos na terra, sem depender do fio

que os ondularia no momento do prazer,

que pêndulo não existe na estatuária...

mesmo fantoches guardando maior brio,

enquanto os dois, coagulado seu viver,

talvez tremessem, sem trazer indumentária!...

 

ALMAS DE FANTOCHES IV

 

Também da Hidra de Lerna me recorda,

com seus tentáculos e as nove cabeças,

para os incautos o amor pregando peças

que nossos corações assim solerte morda.

 

Mas não que seja este amor que aqui se borda

de leve pernicioso, se a razão vira às avessas,

pois tem motivos que nem de leve meças,

que dos primórdios da raça trazem corda.

 

Se amor não fosse assim tão desmedido,

já de há muito acabaria a raça humana,

contrário seja ao que requer o egoísmo,

quer seja a Górgona, a Hidra, o fio trazido

pela Aranha do Destino, nos irmana

e multiplica com seu vasto despotismo!

 


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