sábado, 6 de fevereiro de 2021


 

 

NUVENS DE AZEVICHE I – 28 AG0 20

Das nuvens desce a chuva. Quem a manda

é o Senhor dos Céus, seja qual for;

para quem a Deus contempla com amor,

Ele é o Senhor de toda a pluvial banda.

Alguns antigos criam antes em nefanda

entidade, que recompensava seu frescor

aos que a reverenciavam com temor

e tempestades sobre o chão desanda

como castigo, ou apenas por maldade;

para a ciência será a Dama Natureza,

em nada tida como sobrenatural,

já que explicam com minuciosidade

os processos dessa chuva de riqueza,

nada mais que uma ocorrência material.

 

NUVENS DE AZEVICHE II

As nuvens brancas são, naturalmente,

o objeto mais frequente das poesias;

descrevem as suas danças às gurias

de forma alegre e até luminescente;

lá existem anjos de labor frequente,

formas a dar-lhes consoante as fantasias;

quando se juntam mais, em certos dias,

coloram-nas de negro, para assombrar a gente!

E o céu azul foi por igual louvado.

do qual as nuvens todas se afastaram,

embora seja talvez sinal de seca;

mas nem por isso se abala o enamorado

e do azulejo do céu tambem cantaram

e da luz solar a cobrir tudo em clara beca!

 

NUVENS DE AZEVICHE III

Dizem que os poetas andam com a cabeça

nas nuvens... e em função do ceticismo,

surgiu a moda do nefelibatismo, (*)

a que significado não interessa,

somente o som apresentado nessa peça,

num desafio de um certo nihilismo,

usando termos criados por modismo,

embora o ritmo do poema não se esqueça...

Contudo, as nuvens nunca foram de azeviche,

por mais escuras que pareçam na ocasião,

por mais potente que seja o seu trovão

e nem tampouco nos derramam piche,

porém a água bendita desde os céus,

quando mais negros pareçam seus troféus!

(*) Eles afirmavam que nuvem em grego era “nefélia”.

 

GOTAS DE CHAMAS I – 29 AGO 20

Em tua metempsicose me incendeio,

psicopompa de minha azul estrada; (*)

mesmo que amor enfim não leve a nada,

nessa ânsia pelo ventre me escandeio;

mesmo não tendo o meu, eu beijo o alheio

amor que vejo a meu redor qual fada,

flutuando irrefletida e ensimesmada,

que sem querer do estro me abre o veio. (+)

Já nem ouso mais querer nem esperar

ver a meu lado a alma reencarnada,

arrancada de mim em priscas eras

e me limito apenas a espalhar

o som brejeiro da palavra alada,

que molhei em meu sangue e lanço às feras.

(*) Condutora de almas.

(+) Inspiração poética.

 

GOTAS DE CHAMAS II

Mas a lembrança de ti sobre mim chove,

qual forja ardente de saudade impura,

qual esperança que ainda vã perdura,

qual desalento que jamais se move,

qual um anseio que minhalma escove,

qual brasa viva em vasta queimadura,

qual chama líquida em plena varredura,

saraiva em flama que meu peito sove;

gotas de chamas são estas saudades,

desde a mente vão pingar no coração,

cada lágrima a molhar ideal desfeito,

cada talho a borbulhar iniquidades,

cada brasa a penetrar no meu pulmão,

cada fuligem a colorir-me o peito.

 

GOTAS DE CHAMAS III

E permanece em mim essa miragem:

sei muito bem que não existe chama,

somente o ardor que sobre mim derrama

a cada vez que me encontra de passagem;

gotas de chamas sendo apenas essa imagem,

mas que ilumina uma temível flama,

que vem do talho que minha carne irmana

a tições negros consumidos na voragem.

Psicopompa bem sei que tu não és:

mesmo que julgue te achar reencarnada,

não mais espero a condução ao paraíso;

mas ainda sigo o rastro de teus pés,

e por respeito, só a seu lado piso:

marcas de fogo ao longo da calçada!...

 

GOTAS DE ESCALADA I – 30 AGO 2020

Nessa emoção feroz que tanto me avassala,

busquei um dia, enfim, no mais urgente assédio,

a torre expugnar fortíssima do tédio

homiziado em tua alma – aveludada sala!

Que o gélido esplendor da morte mesmo abala,

o hóspede soturno a expulsar do prédio,

ao alburno contumaz aplicando meu remédio

e a mente te deixar, assim, plena de gala!

Lancei-me em catadupas de ardor e de lascívia;

condescendeste, então, da mente incerta e vaga

os portais a me abrir, assim como se apaga

a luz dessa tristeza, em brilho de lixívia

e o tédio retalhei com o látego de espelho

dos farrapos de minhalma tecendo um brando relho.

 

GOTAS DE ESCALADA II

Mas não se escala alma que tenha a luz perdida

com garras de alpinista, com ganchos ou com cordas,

que a vida adormecida só com ternura acordas,

com paciência só ressurge a alma desvalida,

pois nela é necessário que luz seja vertida,

com sangue de escalada que de teus lábios mordas,

é com sístole e diástole que seus píncaros abordas,

porém tendo blandícia, sem batalha ser renhida;

ao longo dos andaimes pinguei minha escalada,

gota após gota, ampliando lentamente

com cada pingo brando as torres desse assédio,

plataforma foi de beijos a construir escada,

o entusiasmo de seu peito acendendo gentilmente,

pintando de alvaiade os muros de seu tédio.

 

GOTAS DE ESCALADA III

Até a última gota enfim se despejar

e o lento coração em mim se concentrar,

mas tão descrente ainda do que podia me dar,

seu tédio condensado em brancos comprimidos,

surgindo de sua boca os tons desiludidos,

aos poucos na saliva os sons reconhecidos,

na comissura dos lábios sorrisos comedidos,

quase sem crer, enfim, poder de novo amar;

porém dei tanto amor, que a meu amor amou,

bem mais por certo que a quem amor doou,

seu tédio para mim a servir numa bandeja;

e de tanto dar-lhe ânimo, meu ânimo perdi

e de tanto dar-lhe amor, de amor me consumi,

gotas de tédio em mim, quando minha boca a beija.

 

GOTAS DE ESPAÇO I – 31 AGO 20

 

também aqui existe um fragmento

que me disponho a revestir de meu lamento,

da vida brava que tanto me acenou

as forças vivas da mente me esgotou

 

e só me fez comer cacos de espelho;

e em plena juventude fez-me velho,

tão acendrado na chama da poesia,

na sombra morta da vã filosofia,

 

psicológica essa zombaria

do sepulcral amor pela elegia,

que reconheço, incontestavelmente,

abriu-me um oco no interior da mente,

 

em que pululam, quais vistas em cine

dezenas de esperanças de biquini;

então aspiro os seus suores e farejo

odores mais secretos que não vejo,

 

nem a saída da jaula que me encerra,

que a inteligência assombra e mesmo aterra!

 

GOTAS DE ESPAÇO II

 

de certo modo, foi tétano que tive,

perante portas abertas me contive,

como se os dedos paralisassem-me da mão,

em seu lugar a deixar-me infecção,

 

mas os contemplo e vejo que ainda os tenho,

são outros dedos que a lamentar eu venho;

dedos da mente, talvez, dedos da alma,

dedos cortados na indiferente calma

 

ou, quem sabe, cortaram-me os artelhos,

passadas trôpegas, quais são passos de velhos;

não sei se a alma ainda tem os pés,

nada é descrito pelas arcanas fés,

 

embora digam que os arcanjos se envergonham

e um par de asas sobre artelhos ponham,

com outro par os rostos a cobrir,

visões divinas a não se permitir,

 

mas quem sou eu, sem sequer um par de asas,

somente a andar por estas plagas rasas?

 

GOTAS DE ESPAÇO III

 

pelas grades da jaula me transeptam

gotas de espaço que ao redor conectam,

por um momento a trazer-me inspiração,

logo a seguir, provocando expiração,

 

leve tortura com que o espaço insiste

em me dizer que algo de externo existe,

além dos arames de ouro da gaiola,

além do grude do solo que me cola,

 

porém sem deslocar os meus grilhões,

nem dar-me chaves que abririam os portões;

e até queria possuir asas de anjos

e não as seis atribuídas aos arcanjos;

 

e então percebo que é tudo fantasia

e que a ferrugem já tudo corroía:

posso cruzar a galé como um fantasma,

mas que ante a levadiça ingênuo pasma,

 

sem ao ar circundante dar abraço

em seu temor inexperiente desse espaço!


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