quinta-feira, 10 de junho de 2021


 

 

O CÃO SAGRADO – 9 JUN 2021

Lembro que esta não é uma história infantil.  É a descrição pormenorizada de um período histórico pouco conhecido, com o emprego de nomes próprios fenícios e cartagineses.  Os detalhes sobre as práticas de escravidão e rituais primitivos podem causar desagrado a certas pessoas, portanto recomendo o uso de cuidado e critério antes de continuar a leitura.

Capítulo Segundo

Passaram-se as lunações e celebramos minha septíadre com pompa e alegria.  Nem todas as crianças vivem tanto.  A bruma do mar nos traz a pestilência e raros são os próprios adultos que atingem a quinta septíadre, ou trinta e cinco ciclos de treze lunações.  A essa altura, Hanno, outro de meus “primos” também já fora vendido e meu pai, percebendo minha confusão, tomou-me no colo e me falou com gentileza: “Azyadê, minha querida, procura entender, teus avós faleceram ainda na quarta septíadre e esta responsabilidade recaiu sobre mim.  Devo vender essas crianças.  Escolho sempre as melhores familia Sicanas, nas quais sei que não serão maltratados, nem molestados, apenas tratados como escravos da gleba durante sete ciclos lunares.  Depois disso, serão aceitos no exército e se demonstrarem valor e lealdade, poderão receber o título de cidadania ao completarem a terceira septíadre, entendes?  Então deixarão de ser escravos e não herdarão sobre si a menor mácula da Maldita.”

“E as meninas?” – indaguei. “Korê também foi vendida...”  “Eu a vendi para o templo de Tanit, que os Micenianos chamam de Astarte ou Aphrodite.  Ela será bem tratada como escrava e se demonstrar aptidão, será treinada como hetaira, uma profissão muito honrada para os Micenianos, que exercerá a partir do seu décimo-quarto ciclo lunar.  Ao completar a terceira septíadra, poderá escolher um marido e não faltam os Micenianos que se disponham a casar com as hetairas do templo.  Deste modo também deixará de ser escrava. Que melhor destino para as filhas da Maldita? Entendeste agora? O que eu faço é um ato de bondade.”

“Mas os meus pri... os filhos de Kersha?” “A vida militar não é difícil, somos uma nação pacífica e temos boas muralhas... Mas sempre é possível que os piratas Micenianos ou Tirrenos nos queiram atacar, como fizeram no passado.  O exército serve como força de dissuasão... quer dizer, vão pensar duas vezes antes de nos assaltarem.  Na verdade, eles agem mais como patrulha noturna ao longo dos limites de nossos campos.  Se isto não é feito, os mais selvagens de nossos primos Sículos nos assaltam para roubar as colheitas, os animais e mesmo os escravos.  Raramente é preciso entrar em combate, salvo quando um bando mais numeroso se aproxima.  Os filhos de Kersha estarão seguros. Agora, vai brincar, ainda és meio criança.”

            Lembro da primeira vez em que participei de uma festa no templo.  Um grande banquete foi servido, os escravos tocavam e cantavam e as bailadeiras dançavam.  Os Micenianos de Érix também eram convidados e a única reclamação era que serviam mais cidra do que vinho, mas as nossas festividades eram sempre alegres e tranquilas.  A Cadela desse ano estava sentada em uma espécie de trono junto à mesa central, lado a lado com o orgulhoso rapaz com quem havia casado  poucos dias antes.  Ela usava os mesmos trajos suntuosos do desfile e o deus-cachorro, a que se referiam como o deus-vivo, estava em seu colo, embora frequentemente saltasse ao chão para recolher os pedaços de comida que todos lhe jogavam.  Não admira que crescesse tanto, já parecia bem maior.  Mesmo os escravos eram admitidos e escutei de passagem um comentário entre risadas, de que as celebrações dos Micenianos no Templo de Tanit eram muito mais ruidosas e  indecentes do que as nossas.

            Havia outras festividades de que só pude participar nos últimos ciclos de minha segunda septíadre.  O sacrifício havia sido apresentado na véspera, mas não se sabia ainda do resultado.  Um grupo de doze moças vestidas de linho branco estava sentado à parte, enquanto os sacerdotes esparziam o sangue do deus-morto sobre os fiéis a fim de abençoá-los.  Depois disso, apenas os homens livres se aproximavam do altar e recebiam nas bocas um pedaço da carne do deus. Afirmava-se que a essência masculina do deus morto seria assim transmitida por eles à sua descendência.

Em outras ocasiões, algumas lunações após o desfile da Santa Cadela daquele ano, aquelas mesmas doze jovens eram apresentadas a um deus-cão de tamanho médio, que lambia e apalpava algumas delas.  Após cânticos sagrados, em uma língua incompreensível para mim, cinco eram retiradas e sete apresentadas ao deus; uma última vez e apenas três permaneciam, aquelas cujas vestes estivessem mais sujas ou rasgadas, isto é, as que tinham recebido a maior atenção do cão sagrado.  Uma das três seria selecionada meses depois para o sacrifício anual.  Mas me afirmaram que só o fato de estar entre as três já era uma grande honra, pois o deus as agraciara.

            A essa altura, eu já entendia muitas coisas.  Compreendia que todos nós, Sicanos, descendíamos diretamente de Krimisos.  Não os Fenícios e Cartagineses e muito menos os Micenianos, essa graça e privilégio eram exclusivamente nossos.  Nossos primos selvagens, os Sículos, também se consideravam seus descendentes.  Os Micenianos de Segesta zombavam abertamente de nossa santa religião, dizendo que eram seus cães que descendiam de Krimisos e da ninfa Segesta.  Os Micenianos de Érix se calavam a respeito e o Sicanos não comentavam sobre os rituais de sua deusa Astarte.  Eventualmente, os peregrinos demonstravam surpresa por não encontrarem cães nas ruas e nem nas casas de Érix, a cidade do deus-cão, mas eram informados que apenas permaneciam as ninhadas do templo e os excedentes eram de fato enviados para Segesta, de forma que até esse ponto eles não estavam errados.

            Eventualmente soube que Segesta já fora nossa, mas que os sacerdotes a haviam vendido aos Micenianos, por ficar muito afastada e ser difícil de defender.  Com frequência os Sículos atacavam seu campos e eram combatidos ferozmente, do mesmo modo que piratas Tirrenos, cujos corpos eram queimados no meio das plantações, suas cinzas espargidas como adubo e um pequeno monumento comemorativo erguido no lugar da pira, segundo diziam, para homenagear os mortos, mas de fato, porque temiam que  seus manes os viessem perturbar. 

Na ponta oriental da ilha, junto ao estreito de Scylla e Charibdis, viviam Sicanos misturados com Cartagineses, Micenianos e mesmo alguns Tirrenos, que eram comerciantes pacíficos e chamavam a si mesmos de Herthes e se diziam descendentes dos Heteles da Mísia, mas esses Sicanos eram hereges que negavam sua ascendência do Sagrado Krimisos.  Os Tirrenos também afirmavam terem saído de sua cidade Thraya, quando fora destruída pelos Micenianos, aliás, pela sétima vez; estes a haviam reconstruído, mas provavelmente haveria de ser queimada mais uma vez, já que dominava o estreito que dava acesso ao Mar Farsi ou Mar dos Citas, enclausurado no interior do continente.

            Também por essa época tomei consciência de que Herkle, o senhor meu pai, era o homem mais rico de Érix.  Não somente nossa casa era a maior dentro dos muros da cidade, como ele possuía vastos campos de cultivo de linho e de cevada, rebanhos de ovelhas e cabras, olivais e videiras, como um pomar de laranjas, maçãs, romãzeiras e amoreiras, além de uma ampla horta de produtos variados, tudo isso cuidado por mais de cinquenta escravos, que trabalhavam de boa vontade sob a supervisão benevolente de Herkle.  Um dia, indaguei por que eles não fugiam.  Meu pai soltou uma gargalhada:

“Fugir para onde?  Os Sículos estão à espreita e os capturariam... e sabem que nossos primos são canibais... A comida é escassa nas montanhas e é até compreensível que eles devorem os prisioneiros...  Consta mesmo, embora isso seja negado veementemente por eles, que para conservar a carne por mais tempo, eles cortam nacos dos braços e das pernas e cauterizam a ferida de imediato... Podes imaginar a dor dos infelizes?  Não, Azyadê, nenhum deles sequer pensa em fugir.  E depois, como podes ver, são bem tratados, muito melhor que os de outros proprietários.”

            Ainda em meu décimo-terceiro ciclo lunar, percebi que meu pai, embora ainda gentil, evitava de me tocar.  Hirsha, a senhora minha mãe, explicou que ele me preservava, sem entrar em detalhes.  Por algum motivo, lembrei-me de indagar quem eram os pais das escravas permanentemente grávidas.  Hirsha respondeu-me que Herkle tinha o dever de visitá-las.  “Mas a senhora não se importa?”  “Nós, Sicanos de Érix, vivemos muito pouco e cada vez mais as famílias antigas se vêm tornando menos numerosas.  A bruma do mar nos traz a pestilência e muitas crianças morrem, tu já percebeste que três de teus irmãos morreram pequenos e eu mesma ainda abortei várias vezes, não é novidade nenhuma para ti.  Mas o senhor teu pai apenas visita as escravas até ter certeza de que estão prenhes.  Em breve tempo teus dois irmãos terão idade suficiente para cumprir esse dever e então ele visitará somente a mim, ainda que eu já tenha perdido a esperança de ter mais filhos...” 

            “E ele também visita Kersha?” “De modo algum!” – respondeu-me consternada. “Se o fizesse, traria a maldição sobre nós!...  Ela cumpre o seu dever com os escravos do campo.”  Após uma pausa, quase como uma lembrança tardia, ela acrescentou: “Mas a Maldita já está bem avançada em sua quarta septríade, em breve completará a quinta e será dispensada dessa obrigação, de uma forma ou de outra.  Afinal, ela tem nove crias vivas e perdeu pelo menos cinco. Mas vamos encerrar esta conversa agora, já sabes mais do que o suficiente para tua idade.”

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário