quinta-feira, 10 de junho de 2021


 

O CÃO SAGRADO

Esta não é uma história infantil.   Embora estritamente de caráter histórico, mesmo sendo um episódio pouco conhecido, inclusive com o emprego de nomes originais fenícios ou cartagineses, certos pormenores sobre a escravidão e rituais primitivos poderão causar a alguns um certo desconforto.  Portanto, recomendamos empregar seu próprio critério antes de encetar ou continuar a leitura.

Capítulo Primeiro – 7 junho 2021

Krimisos, o deus-cão, é o nosso patrono e protetor.

Érix é a cidade mais ocidental do mundo civilizado.   Localiza-se justamente no promontório que se projeta contra o Mar Cartaginês da ponta oeste da Sicília.  Desde tempos imemoriais foram  aqui erigidos os templos de Krimisos e de Tanit, a deusa-mãe cartaginesa.  Mas Krimisos é o deus mais antigo, que fecundou sete ninfas e se tornou o pai de todos os Sicanos.  Os Micenianos orientais, que chegaram bem mais tarde, não cultuam nosso deus e reconstruíram e ampliaram o templo abandonado de Tanit, transformando-o em um santuário de sua própria deusa Astarte, que também chamam de Aphrodite, o qual hoje alcança grande fama e é objeto de peregrinação de toda a ilha, desde a estrada do norte, a partir de Himera e da estrada do sul, que se inicia em Akragas.  Contudo, muitos chegam igualmente desde Siracusa, geralmente indo de barco através do estreito até Himera, já que a margem sul da ilha é ainda mais perigosa que os redemoinhos, pois os comerciantes Fenícios tendem a afundar a maior parte dos barcos rivais, a fim de manter em segredo as suas rotas marítimas até Massilia e seus entrepostos comerciais na Gália, Hispânia, Gétula e Numídiia. 

Mas tudo isso eu só vim a saber mais tarde.  Muito se aprende e pouco se recorda em nossos primeiros anos.  Minha primeira lembrança nítida provém da metade de minha primeira septríade, eu deveria ter então mais ou menos quatro anos.  Um dia, minha atenção foi despertada, juntamente com a dos escravos, de meus pais e das demais crianças, pelo estrondo de tambores, pífanos e adufes na rua que passava em frente à nossa casa, que mais tarde vim a saber ser a avenida principal que conduzia diretamente ao templo do Cão Divino. 

Chegamos à sacada, enquanto os escravos se aglomeravam junto à soleira da porta.  Um grupo de sacerdotes tocava os instrumentos, enquanto os escravos do templo atrelados a uma carruagem puxavam uma mulher vestida com a custosa seda de Cos, no Mar Fenício, coberta de jóias, com sandálias de couro vermelho nos pés, presas em tiras de pano de púrpura entrecruzadas e amarradas atrás dos joelhos, trazendo na cabeça uma tiara de ouro em formato de folhas de louro, uma árvore muito rara na Sicânia.  O povo a aclamava com grande estardalhaço: “Cadela!  Cadela!  Santa Cadela! Cadela bem-aventurada!” e saudações semelhantes.  Mas o que mais me chamou a atenção foi um animal negro e peludo no seu colo, que eu não recordava de ter visto antes.

Perguntei o que era.  “É a Sagrada Cadela, a abençoada do Deus Krimisos!  Teremos boas colheitas este ano e as cabras e ovelhas se reproduzirão!”  Fiquei confusa e repeti a pergunta: “Não, o que é aquele bicho?” As pessoas me olharam sem compreender.  “Aquele animal preto,” insisti.  Os escravos viraram o rosto, porém minha mãe explicou: “És ainda muito pequena para saber dessas coisas.  É o deus-cachorro, que vai nos proteger durante este ano.”  Fiquei ainda mais confusa, pois já escutara de passagem referências a Krimisos, o deus-cão, mas o que era um “deus-cachorro”? Contudo, minha mãe me fez sinal para aguardar em silêncio enquanto a procissão passava alegremente.

É provável que ela pensasse que eu tivesse esquecido ou então fingiu que assim pensava.  Mas Herkle, meu pai, que sempre me deu atenção e demonstrou carinho, explicou melhor: “Ele cresce, Azyadê, minha querida e dentro de alguns meses será o deus-cão adulto.”  “E a moça?” – me animei a perguntar.  “Ela foi abençoada e traz no ventre a cria do deus.  Está sendo levada de volta para a casa de seus pais com toda a honra e respeito que merece.”  Depois disso, minha mãe me olhou de forma tão severa que não me atrevi a perguntar mais nada.  Afinal, eu era ainda pequena e fui brincar com meus dois irmãos e Helkiss, minha irmã mais moça. 

Alguns meses depois, nova agitação percorreu a rua.  Fomos todos observar, com antes.  Novamente os sacerdotes tocavam seus instrumentos, mas ao invés de uma carruagem, era apenas uma liteira descoberta, transportada por quatro escravos.  Em pé, segurando-se a uma ripa atravessada na parte dianteira, seguia outra mulher, porém descalça e de cabelos soltos e usando uma simples túnica de linho de uso diário entre as Sicanas.  O povo desta vez não aplaudia, apenas a olhava, certamente com respeito, mas com expressões de dúvida e de preocupação.  Indaguei, naturalmente e minha mãe respondeu: “Ela é o sacrificio para o deus-cão” e não disse nada mais, porém vi em seu rosto uma expressão estranha, que nunca esqueci e só mais tarde interpretei como sendo um misto de inveja e de rancor.

A cada ano se repetiam ambos os cortejos.  Certo dia, percebi pela primeira vez que meus pais estavam retornando da rua, com suas vestes de linho marcadas de manchas castanhas.  Nada perguntei, porém Herkle, meu pai amoroso, vendo a curiosidade em meus olhos, falou em um tom de orgulho: “É o sangue do deus-morto, querida, para nos abençoar durante todo o ano.” Minha confusão só fazia aumentar, quando meus pais tiraram as túnicas e as penduraram com toda a reverência.  Uma semana depois, fomos todos chamados, escravos e crianças, para assistir enquanto as túnicas eram queimadas no altar dos Lares e depois as cinzas recolhidas.   Desta vez foi minha mãe que me informou: “Vão ser espalhadas em nossos campos, querida...”

Kersha, a Maldita, era a principal escrava e supervisionava o trabalho de todas as demais, embora ela mesma realizasse boa parte dele.  Ela vestia somente uma túnica solta de estamenha (estopa), os cabelos sempre soltos e os pés descalços, inverno e verão.  As demais escravas usavam vestes de algodão grosseiros e tamancos nos pés, muitas delas amarravam os cabelos.  Pensei que a estranha indumentária de Kersha fosse o sinal de sua posição superior.  Ela mantinha um controle firme sobre as demais escravas e trazia à cintura um pequeno azorrague de três pontas.  Quando alguma escrava nova a desobedecia ou mesmo se atrevia a tratá-la de “Maldita!”, ela a espancava até a submissão, com total aprovação de meus pais.

Kersha passava permanentemente grávida.  Tivera já muitos filhos e apenas dois haviam morrido.  Tais crianças tinham permissão para brincar conosco, o que não acontecia com os filhos dos demais escravos.  Um dia dei falta de Melkari, o mais velho e indaguei se estava doente.  Minha mãe me olhou de forma estranha e disse que ele fora vendido. “E Kersha permitiu?” “Em nossa casa, o único a permitir ou negar alguma coisa é Herkle, o senhor teu pai.”  Assunto encerrado.

Mais tarde, encontrei Kersha sozinha e lhe perguntei se não se importava que Melkari tivesse sido vendido.  Ela suspirou.  “Ele não foi o primeiro, querida, meus dois mais velhos também já foram assim que completaram sua primeira septríadre.  É o costume...” “Mas por que?” – eu explodi.  “Por que você não protesta?” Ela olhou ao redor, para confirmar que estávamos sozinhas.  “Escute, querida, meus filhos são escravos como eu.  O amo é muito bom para nós e escolhe cuidadosamente os compradores.  São apenas boas familias Sicanas como a nossa... digo, como a tua.  Eles não são espancados nem molestados e ao completarem a segunda septíadre serão aceitos no exército.  Que melhor destino podem esperar os filhos da Maldita?” 

“Mas e por que te chamam de Maldita?” “Isso não posso jamais lhe dizer, caso contrário, meus filhos não serão apenas escravos, porém malditos como eu... Portanto, nunca mais toque nesse assunto comigo. Pergunte a Hirsha, a senhora sua mãe, ela pode lhe explicar, caso o deseje.” “Minha mãe nunca me diz nada... Vou perguntar ao pai.”  “Não faça isso!” – Kersha exclamou alarmada.  “Ele poderá me expulsar de casa para o alojamento dos servos do campo ou talvez me vender!  Não pergunte porquê!”   E deu-me as costas, deixando-me sozinha, balançando ao caminhar, já no final de sua prenhez mais recente.

No dia seguinte, tomei coragem e fui conversar com minha mãe.  Ela me encarou atentamente e depois disse, quase que num desabafo: “Acho que já tens idade suficiente.  Kersha foi rejeitada pelo deus-cão.  Os sacerdotes a trouxeram de noite para a casa de nossos pais, assim como está agora, vestida de estamenha e descalça.  O normal é que as Malditas sejam entregues a nossos primos selvagens, os Sículos, que moram nas serras do interior da ilha ou então sejam vendidas a preço vil para os Fenícios ou os Tirrenos que as levam só os deuses sabem onde.  Porém nossos pais se decidiram a  conservá-la, já suspeitavam de que isso acontecesse, pois ela fora sacrificada três meses antes e em geral as Santas Cadelas são devolvidas depois de dois meses.”

Só então reparei na perfeita semelhança entre os olhos grandes de íris douradas de Kersha e os de minha mãe.  Indaguei: “Por que a senhora disse “nossos pais”?  “Kersha é minha irmã mais velha, ainda não havias percebido?”  Fiquei muda com o choque, mas ela continuou, mesmo assim: “Conservá-la como filha amaldiçoaria também a casa inteira.  Nosso pai confabulou com os sacerdotes e mediante um pagamento de sete peças de prata cartaginesa, eles concordaram em retirar a maldição de sobre nós.  Derramaram três odres de azeite sobre a soleira e o pincelaram no umbral, nas folhas da porta e nos marcos; depois sete odres de vinho e finalmente, doze odres de água pura retirada da fonte sagrada do deus-cão.”

“Quer dizer que Kersha é minha tia?” – balbuciei, assombrada.  “Nada disso!  Com a maldição deixou de ser minha irmã e só foi permitido que permanecesse conosco na condição de escrava, mas a Maldita é só ela, seus filhos só partilham da escravatura.   Mas ela deve ter o máximo de filhos escravos para compensar a rejeição do deus. É verdade que ela afirma que seu filho mais velho é cria do deus-cão, mas ninguém a leva a sério.  E é por isso que ela deve andar descalça, de cabeça descoberta e vestida de estamenha, faça calor ou faça frio e é muito mais do que ela merece.”  “Mesmo assim...” “Tu não entendes, não é mesmo?  Por causa dela eu nunca pude ser apresentada ao deus para a escolha do sacrifício!...”  “Mas meus primos...”  “Não são teus primos, são filhos da Maldita, que é visitada regularmente pelos escravos, que não são de nossa raça, uma vergonha, mas é o que a lei canina determina.   Já falei demais.  Espera completar tua primeira septíadre no fim deste ciclo lunar e então o senhor teu pai te instruirá.  Mas Kersha não é tua tia!  É apenas uma escrava privilegiada em nosso lar!...”

 

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