sábado, 12 de junho de 2021


 

 


 

O CÃO SAGRADO

Capítulo Terceiro

ESTA NÃO É UMA HISTÓRIA INFANTIL.  Antes da leitura desta terceira e última parte, recordo a necessidade de discrição, já que pormenores sobre a prática ritual e escravidão no período histórico anterior ao paganismo clássico podem causar desagrado a certas pessoas. Na ilustração a atriz francesa Brigitte Bardot na praia com seu animal de estimação (sem afirmar que fosse chamado Krimisos, nem que ela o cultuasse de qualquer forma!).

            Quando eu completei meu décimo-terceiro ciclo lunar, os sacerdotes do deus-cão bateram à nossa porta para informar que eu deveria participar da seleção daquele ano.  O senhor meu pai se demonstrou muito alegre e orgulhoso, ofereceu-lhes uma peça de prata cartaginesa e convidou-os para entrar.  Os três homens, já bastante idosos, talvez com mais de quarenta ciclos, após uma certa hesitação, concordaram e celebraram um breve ritual diante do altar de nossos Lares, mas não aceitaram nada de beber ou de comer.  Kersha e Hirsha, minha senhora mãe, pareceram mais ansiosas do que satisfeitas, mas me prepararam cuidadosamente para a ocasião solene. 

            Diante de uma vasta congregação, eu e mais onze jovens da minha idade fomos levadas ao altar, vestidas com simples trajos de linho, descalças e com as cabeças descobertas. Por entre cânticos e proclamações sacras, sentamos em fila, de pernas cruzadas, como nos haviam ensinado e o deus-cão foi trazido à nossa presença.  Ele nos cheirou e apalpou, lambeu meu rosto e os de outras mais.  Cinco foram retiradas, os cânticos se repetiram e o deus voltou a examinar as sete restantes; novamente nos apalpou e ao ser retirado, os sacerdotes examinaram as que tinham as roupas mais sujas e rasgadas e selecionaram três de nós, eu e mais duas.  Depois disso, com mais cânticos e homilias, permitiram que nossos pais nos levassem consigo.  Por alguns dias, houve grande expectativa em nosso lar.

            Finalmente, os três sacerdotes retornaram, acompanhados por todo o concílio, as dançarinas e os escravos do templo e anunciaram que eu havia sido escolhida para o sacrifício.   Como vira anteriormente, usando uma  túnica simples de linho, descalça e com a cabeça descoberta, fizeram-me subir a uma liteira aberta, transportada por quatro escravos e fui transportada para o templo, sem aclamações, sob os olhares curiosos e apreensivos da multidão parada ao longo das calçadas ou nas aberturas das casas.  Somente os sacerdotes e as dançarinas entraram pela grande portalada.  A liteira foi deixada ao pé da escadaria e eu fui empurrada gentilmente para subir a pé.  Fui banhada, meu corpo esfregado com óleo santo, depois fui alimentada e revestida de uma túnica simples de lã, tudo isso em total silêncio, mas com o máximo respeito.  O deus apareceu, peludo e negro, muito maior que eu recordava, farejou-me, lambeu-me as mãos e se afastou.

            Depois me deram a beber uma tisana levemente amarga e dentro de poucos instantes perdi todo o controle de meu corpo.  Agora, entre cânticos e suas prédicas incompreensíveis,  me ergueram e colocaram de bruços sobre um leito de pedra, coberto apenas por um pano de lã.  Percebi impotente que me erguiam a túnica até a cintura e afastavam minhas pernas.  Então chegou o deus e me cobriu, suas patas em meus ombros, resfolegando e lambendo meu pescoço.  Senti que se movia sobre e então dentro de mim, sem me provocar a menor sensação.  Então ouvi um ruído rascante, o deus ganiu, estremeceu algumas vezes e tombou inteiramente sobre mim, enquanto um líquido quente e espesso me recobria o pescoço, os ombros e os cabelos.  Respirei um odor forte e metálico. Logo depois, o deus se retirou para retornar logo em seguida, agora maior e mais pesado.  Senti que me penetrava mais profundamente e após um período indeterminado, percebi que algo quente era derramado dentro de mim, antes mesmo que esfriasse o líquido que recobria meus cabelos. 

            Logo depois, perdi toda a consciência.  Na manhã seguinte, fui retirada do leito de pedra e levada para um tanque circular.  Percebi que havia recobrado todo o controle de meus membros, mas as escravas insistiam em me movimentar, lavaram-me completamente, e senti que retiravam uma espécie de rolha de cera da saída de meu ventre.  Meus cabelos foram limpos de todos os grumos acastanhados, senti de novo levemente o cheiro metálico.  Vestiram-me outra vez com uma túnica de lã, fui alimentada e cortejada, depois dormi quase todo o dia.

            Quando a noite se aproximava, deram-me de novo a beberagem mística e percebi que era levada novamente até o leito de pedra.  Não senti o deus pequeno, nem nada se derramou sobre meu pescoço e meus ombros.  Mas chegou o deus grande e novamente senti que me cobria, até o líquido quente me preencher.  Desta vez percebi quando a rolha de cera era colocada em meu corpo.   Então me transportaram para um leito macio e só me acordei no dia seguinte, quando outra vez me banharam e me ungiram.  A mesma coisa ocorreu pelos cinco dias seguintes dessa lunação.  Eu me acostumei a esperar pelo deus grande, mas quando indaguei sobre o deus menor, foi-me dito que o seu sangue já fora aspergido sobre o povo com hissopos e sua carne consumida pelos homens Sicanos.  Nada mais perguntei, algo na bebida ou no alimento que me administravam me conservava meio tonta e sem ânimo.

            Completados aqueles sete dias, a alimentação mudou e minha disposição me permitiu andar e mover-me à vontade.  Escravas e sacerdotes me acompanhavam sempre e percorria todas as dependências do templo, mas não me era permitido sair nem receber visitas.  Mostraram-me uma prensa em que eram moídos os ossos do deus morto, para serem ritualmente espalhados pelos campos e um tanque em que fora fervido o lençol sobre o qual eu estivera deitada, a fim de retirar todo o sangue, que fora mantido morno até a manhã seguinte, evitando que se coagulasse antes da aspersão ritual para a purificação do povo.  Ao longo das paredes das câmaras interiores, avistei pendurados centenas de pelegos negros, conservados os crânios e as patas dianteiras das antigas encarnações do santísimo deus Krimisos, algumas delas tão velhas que já se desmanchavam e finalmente fui levada a um quarto onde encontrei uma cadela negra amamentando seus filhotes e fui encorajada a tocar nas crias, até que um machinho começou a me sugar um dedo, diante das aclamações de júbilo dos sacerdotes e das escravas.

            No final da lunação, o mal das mulheres não havia aparecido, mas mesmo assim, fui drogada e levada ao leito de pedra onde o deus grande novamente me cobriu durante os sete dias da fase lunar.  Devido às tisanas que me serviam, somente aos poucos percebi o que estava ocorrendo.  Novamente tive liberdade durante as três fases seguintes e no final da lunação, ao perceberem que a maldição feminina não havia retornado, todos se rejubilaram e se ajoelharam perante mim, chamando-me de Santa Cadela.

            No dia seguinte, ainda de madrugada, vestiram-me com a caríssima seda de Cos, calçaram-me os pés com sandálias de couro vermelho, com tiras de tecido púrpura entrecruzadas e amarradas atrás dos joelhos, deram-me um colar, uma profusão de anéis, braceletes e tornozeleiras e colocaram uma tiara de ouro em minha cabeça, imitando as folhas do raro loureiro.  Trouxeram-me o cãozinho negro que me havia chupado o dedo, tomei-o nos braços e me disseram que era a reencarnação de Krimisos, o novo cão sagrado.  Levaram-me à carruagem e foi iniciada a procissão, enquanto as dançarinas executavam suas danças sacras e o povo me aclamava com o mesmo estardalhaço que já ouvira tantas vezes: “Cadela!  Cadela!  Santa Cadela! Cadela bem-aventurada!” e exclamações parecidas.  Eu e o animalzinho manso no meu colo éramos a prova viva de que as colheitas seriam abundantes esse ano, de que as cabras e ovelhas teriam muitas crias e que, talvez, poucos Sicanos morressem da febre do mar nesse verão.

            Fui levada até a casa de meus pais e recebida na maior exultação.  Para minha surpresa, Kersha usava uma túnica de linho, atara os cabelos e trazia sandálias de couro cru em seus pés, caminhando nelas um tanto desajeitada pela falta de prática.  Porém um rapaz bastante simpático me aguardava, disseram-me ser meu noivo e que seu nome era Shimsha.  O casamento se celebrou dentro de três dias, com grandes festividades e as maiores bênçãos dos sacerdotes.  Com exceção da guarda das fronteiras e das muralhas, todos os habitantes participaram, inclusive os escravos e até mesmo nossos vizinhos Micenianos.

            No final da fase lunar, celebrou-se o grande banquete em frente ao templo de Krimisos, Shimsha muito orgulhoso a meu lado, pois já me havia visitado quatro ou cinco vezes desde a celebração da boda. Mas isto já foi descrito em ocasiões anteriores.

            Mudei-me para a casa de Shimsha, muito menor que a nossa, mas bem equipada e guarnecida.  Quando meus pais e meus irmãos morrerem, talvez eu volte para meu antigo lar.  Fora também o lar de meus avós, mas Hirsha não tinha irmãos e Kersha fora amaldiçoada, de modo que herdou a casa em breve tempo.  Como foi dito, a bruma do mar destrói a vida dos Sicanos em curto prazo.  Kersha, agora redimida desde que eu mesma me tornara a Cadela, não mais era escrava e nem amaldiçoada, viera morar conosco e trouxera consigo seus três filhos menores.

            Temos apenas três escravas.  Shimsha me prometeu ficar apenas comigo até o quinto mês de minha esperança.  Nos meses finais ele visitaria as escravas, porém me garantiu que me queria acima de todas e que somente as visitaria até saber que estavam prenhes.  Como em nossa casa, Kersha as examinava e determinava seus períodos férteis e o resultado das visitas.  Depois que o filho do deus-cão nascesse, ele voltaria apenas para mim, a fim de garantir a continuação da própria estirpe.  Meu nenê ainda não tem nome, dá má sorte mencionar seu possível sexo ou um nome que o possa indicar. 

            Kersha e eu nunca comentamos, sequer entre nós, o que ocorre nos rituais sacrossantos do bendito Krimisos, nosso cão sagrado, patrono e protetor de Érix.  Porém nós duas sabemos.

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Encontrei a primeira alusão a esta religião primitiva e anterior ao paganismo greco-romano no livro Turms, o Etrusco, de Mika Waltari, embora apenas de passagem.  Pesquisei citações esparsas em vários autores clássicos, mas a maioria dos detalhes foram fornecidos por Dionisos Sículo (que era grego e nao Sículo) e especialmente em Johannes Tzetzes, o grande mitóstego, em sua extensa obra, as Ante-Homérica, que naturalmente só consultei através de traduções.  Mas todos os detalhes referentes à escravidão e aos peculiares rituais de Érix são históricos, inclusive a escolha de nomes próprios, de fato Fenícios ou Cartagineses.  Naturalmente, sendo escrita segundo o ponto de vista da protagonista, seus sentimentos e ideias tiveram de ser elaborados.  Os Micenianos são antepassados dos Helenos ou Gregos, que toleravam esses rituais sem deles participarem, na verdade muito menos tétricos que as religiões sangrentas de Moloch de Cartago ou de Scylla e Charibdis, cultuados pelos habitantes do estreito de Messina.  Mais tarde, os Romanos suprimiram todos estes cultos, particularmente a partir da queda de Cartago e depois da imposição do culto da Deusa Roma e do Deus Imperador durante o domínio de César Augusto. Mesmo autores clássicos comentam que os mitos do Minotauro e de Leda e o Cisne, com a geração de Helena e seus irmãos, provavelmente remontam ao período pelásgico, anterior à chegada das quatro tribos dos Helenos, já que o paganismo greco-romano não incluía práticas de zoofilia, mesmo sendo apenas figuradas. Ainda assim, os mitos foram abrandados, afirmando-se que estes animais eram somente transformações de Zeus, em sua cobiça constante por mulheres humanas.  As ruínas de Érix provavelmente se encontram no Cabo Boeo, perto da atual cidade de Marsala.

 

 

 


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